Alves Duarte Advogados

Direito empresarial em tempos de isolamento

Por que as iniciativas adotadas no setor financeiro devem ser complementadas por reformas na legislação falimentar

Já não é segredo que as medidas sanitárias rigorosas, porém necessárias, adotadas em diversos países para conter o avanço do Covid-19 ameaçam gerar recessão econômica. Com exceção de poucos setores, como o de alimentos, a queda drástica no consumo provoca redução generalizada de receita.

Os próximos capítulos dessa história podem ser antecipados e não parecem promissores: muitas empresas viáveis no médio e no longo prazo vão acabar sem dinheiro em caixa para pagar fornecedores e outros credores, o que pode gerar um efeito dominó de inadimplementos e falências. As medidas já adotadas no setor financeiro no Brasil podem reduzir a extensão desses problemas. Agora, elas precisam ser complementadas por alterações na legislação falimentar.

Tanto a piora de indicadores contábeis ou financeiros em decorrência da queda nas vendas quanto o descumprimento de obrigações são gatilhos para que credores passem a ter o direito de requerer a falência de empresas. O problema é que a saída de empresas de cena em razão da atual pandemia é indesejável do ponto de vista econômico e social. Os problemas de caixa generalizados decorrem de um fato circunstancial e devem acabar em um futuro próximo. Quando isso ocorrer, empresas que hoje estão asfixiadas serão capazes de voltar a produzir produtos importantes para seus compradores, manter empregos, pagar tributos e quitar seus débitos.

Ainda assim, pode ser que um dos seus credores prefira optar pela via da falência do que esperar pela retomada econômica. Obviamente, isso não interessa a mais ninguém. Trabalhadores, fornecedores, outros credores, consumidores e investidores, todos sairiam prejudicados. Não é à toa que muitos países têm se mobilizado para impedir a quebra generalizada de empresas viáveis.

Para lidar com a falta de dinheiro em caixa, as empresas têm três alternativas.

A primeira é se desfazer de bens, como máquinas, equipamentos e imóveis utilizados em sua atividade produtiva. Essa alternativa deve ser evitada a todo custo: bens do chamado ativo imobilizado serão vendidos a um valor muito baixo, o que pode transformar problemas de liquidez em problemas de solvência. A segunda estratégia é a renegociação de débitos. Ela depende da concordância do credor e pode ser especialmente difícil para pequenas e médias empresas (PMEs), que têm pouco poder de barganha, e empresas com capital pulverizado, que enfrentam problemas de coordenação para lidar com muitas contrapartes diferentes. A terceira estratégia é a obtenção de capital para fazer frente às necessidades de fluxo de caixa. Em tempos de crise e dada a urgência das empresas, o mercado de capitais praticamente deixa de ser uma alternativa para esse fim. Resta a via do crédito bancário. Mas os bancos também podem enfrentar problemas de liquidez e não devem assumir risco excessivo.

Esse nó começou a ser desatado pelo Banco Central (BC). Ao abrir linhas de assistência financeira de liquidez, reduzir requerimentos de capital anticíclicos, relaxar regras de provisionamento e recolhimento compulsório, entre outras medidas, o BC agiu tempestivamente para evitar que a crise contagie o sistema financeiro.

Em um segundo momento, reconheceu-se que muitas empresas com problemas de caixa não conseguirão renegociar seus débitos ou acessar crédito bancário. Isso motivou a abertura de linhas de crédito extraordinárias, especialmente pelo BNDES.

Contudo, há questões ainda em aberto. O resgate público pode não ser em volume suficiente para – ou pode não chegar a tempo de – evitar quebras indesejáveis. Não custa repetir, principalmente as PMEs enfrentam situação especialmente preocupante. Além de ter pouco poder de barganha para renegociar contratos, PMEs têm menos caixa – estima-se que, em cenários de crise, eles durem, em média, pouco menos de um mês. Além disso, têm poucos bens para oferecer em garantia e dispõem de menos informações contábeis e financeiras que permitam estimativas precisas do seu risco, o que dificulta a obtenção de crédito bancário.

Diante desse cenário, é preciso administrar um terceiro remédio para evitar a morte prematura de empresas. Ele consiste na alteração da legislação falimentar.

Em outros países, as respostas cogitadas ou já executadas1 nesse campo tem compreendido: (i) a suspensão do dever legal de administradores de declaração de autofalência – nas jurisdições em que esse dever existe; (ii) a suspensão do direito dos credores de requerer falência do seu devedor ou de exigir a restituição de bens em caso de inadimplemento de prestações; (iii) a suspensão da vigência de cláusulas ipso facto, que dão a uma parte o direito de rescindir contratos diante de eventos que indiquem a insolvência da sua contraparte; (iv) a extensão de prazos de vencimento de títulos de dívida2; (v) o tratamento especial de credores que resgatem empresas durante a crise.

Com a agilidade que o cenário atual recomenda, medidas como essas devem ser adaptadas à legislação falimentar brasileira.

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1 Ver https://www.derechoyfinanzas.org/en/insolvency-law-in-times-of-covid-19/.

2 Na forma e pelas razões expostas por Kristin van Zwieten, Horst Eidenmüller e Luca Enriques neste artigo: https://www.law.ox.ac.uk/business-law-blog/blog/2020/03/covid-19-global-moratorium-corporate-bonds,